quinta-feira, 29 de junho de 2017

O que é o reexame de matéria fática?



Você certamente já ouviu falar do tal “reexame de matéria fática” que impede inúmeros recursos de terem seu mérito analisado, confirmando a decisão a quo. Mas, você sabe o que vem a ser o reexame de matéria fática?
            Todo mérito de uma causa é discutido questões de fato e questões de direito. Daremos o exemplo de um rapaz de 20 anos que é pego, segundo a Polícia Militar, com 3g de droga, possuindo uma extensa ficha criminal quando menor. Julgado, foi condenado incurso no crime do art. 33, § 4º da Lei 11.343/06 a uma pena de 05 (cinco) anos de prisão em regime fechado, eis que nem todas as circunstâncias do art. 59 do Código Penal lhe foram favoráveis, majorando a pena-base e diminuindo no mínimo a fração do § 4º do referido art. 33 e foi considerado reinciente (art. 61, I do Código Penal), pois cometeu crime com trânsito em julgado quando menor. Quanto ao regime inicial de pena, o julgado entendeu que a Lei de Crimes Hediondos (Lei 8072/90) determina o regime inicial de pena como fechado e que tal norma não foi ainda decretada inconstitucional, ainda que haja a Súmula Vinculante 26.
Questões fáticas são discussões, dentro do processo, existentes aos fatos que ensejam – ou não – o direito de uma parte ou de outra. No exemplo anterior, podemos dissertar que seja questões fáticas a alegação da acusação e dos policiais de terem encontrado o rapaz com a droga, o fato de ele ser menor de 21 anos e a majoração da pena-base e a diminuição ao mínimo por não terem todas as condições do art. 59 do Código Penal favoráveis. São circunstâncias de fato, eis que os fatos narrados no processo motivam o magistrado a condenar ou absolver, a majorar a pena-base, dentre outros, não havendo discussão de aplicação, ou não, de lei.
Já questões de direito são discussões existentes no processo quanto à aplicação ou não de uma lei no caso em comento. No exemplo anterior, podemos trazer, por exemplo, a não aplicação do magistrado da Súmula Vinculante 26, que permite aos condenados em crimes hediondos ou equiparados cumprimento inicial de pena em regime que não o fechado, discutindo-se a aplicação da referida súmula mesmo com a não decretação de inconstitucionalidade, em sede de ADIN, pelo Supremo Tribunal Federal. Da mesma forma, a discussão se pode aplicar a regra da reincidência quando os crimes anteriores foram cometidos quando o agente era menor também é uma questão de direito. São discussões de aplicação ou não de determinada lei ao caso concreto, não se modificando as questões fáticas peculiares daquele processo.
No processo judicial brasileiro, seja cível, trabalhista, criminal, tributário ou qualquer outro, as partes possuem direito de recorrer uma única vez pelo mero inconformismo com a decisão judicial. É o chamado duplo grau de jurisdição. Assim, se a parte sucumbente de um processo qualquer perdeu na Comarca de São Paulo/SP, poderá livremente recorrer, pelo mero inconformismo com a decisão, ao Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP).
Todavia, para os Tribunais Superiores (TST, TSE, STJ e STF), o mero inconformismo não gera motivação suficiente para que os recursos (extraordinário, especial ou de revista) sejam julgados por estes Tribunais. Cada recurso tem sua particularidade, mas todos possuem o mesmo critério: é necessário que o julgamento do processo influencie mais do que meramente as partes litigantes, mas sim toda a sociedade. Ou seja, o resultado do recurso influenciará as partes e os outros recursos parecidos que ainda estão para julgar.
Isso se dá pelo fato de os Tribunais Superiores existirem com o principal intuito de unificar jurisprudências distintas existentes em Tribunais Regionais Brasil afora. É muito problemático para um regime democrático como o brasileiro que o Tribunal de Justiça de São Paulo, por exemplo, julgue determinados casos de forma “A” e o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJRJ) julgue “B”. Assim, no intuito de uniformizar jurisprudências de leis infraconstitucionais ou da própria Constituição Federal, foram criados os Tribunais Superiores.
            Dessa forma, os recursos para os Tribunais Superiores só discutem questões de direito, sendo que as questões de fato, particulares de cada processo, só podem ser discutidos em primeira e segunda instância. Portanto, nos Tribunais Superiores não são permitidos o reexame de matéria fática (Súmula 7 do STJ; Súmula 126 do TST, Súmula 24 do TSE e Súmula 279 do STF), podendo se discutir apenas questões de direito nos recursos especial (para o STJ ou TSE), revista (para o TST) ou extraordinário (STF), além de haver os demais requisitos exigidos pela lei.

quinta-feira, 22 de junho de 2017

Desacato e o endeusamento dos servidores públicos

O crime de desacato vem estampado atualmente no art. 331 do Código Penal de 1940, nos Crimes contra a Administração Pública. Segundo o referido artigo, é crime “desacatar funcionário público no exercício da função ou em razão dela”, com penas que variam entre seis meses e dois anos de detenção, ou multa. “Desacatar” é, segundo o dicionário, “não guardar o respeito devido a alguém”, menosprezar, tratar com indelicada ou irreverência. É desacato, então, quem xinga um funcionário público, quem o humilha, desdenha seu trabalho, dentre outras condutas.
Tal crime nasceu no Código Criminal de 1890, em seu art. 134, que determinava ser crime de desacato “desacatar qualquer autoridade, ou funccionario publico, em exercicio de suas funcções, offendendo-o directamente por palavras ou actos, ou faltando á consideração devida e á obediencia hierarchica”, com penas que variam entre dois a quatro meses de prisão. A intenção do legislador da época era resguardar o respeito e a devida admiração da sociedade com os funcionários públicos, que trabalhavam e movimentavam a máquina estatal; sendo, portanto, representantes do Estado. Tal espírito continuava vigente durante a época de Vargas – quando foi promulgado o Decreto-Lei 2848, de 1940, que implementou o novo e atual Código Penal.
Entretanto, 75 anos já se passaram desde a promulgação do Código Penal de Getúlio Vargas. O respeito e a devida admiração e submissão aos funcionários públicos deixaram de existir com o passar dos anos. Hoje visualizamos todos os funcionários, sendo público ou privado, de maneira igual, sem um estar acima do outro – principalmente por ocasião da promulgação da Carta Magna de 1988, que trouxe a igualdade entre as pessoas como patamar máximo a ser respeitado por todos e a responsabilização do servidor público, por crime de responsabilidade (Lei 1079/50) ou por improbidade administrativa (Lei 8429/92). Não mais existe aquela sensação de o servidor público ser alguém superior ao particular.
 Porém, com o ainda em vigor crime de desacato, cria-se uma barreira intransponível entre particular e servidor público, transformando o último praticamente em intocável. Não se pode discutir com um servidor público, discordar de suas opiniões ou atos, defender os seus direitos. Qualquer levantamento de voz por parte do particular é reprimido pelo funcionário público, sob pena de receber voz de prisão por desacato. E ainda que tal conduta seja posteriormente anulada pelo Poder Judiciário, não há qualquer sanção para o funcionário que abusou de seu cargo - e, se houver, é mínima, não cumprindo com suas funções de punir e reprimir.
            O crime de desacato praticamente transforma o servidor público em uma espécie de divindade superior – intocável e inquestionável, não podendo o particular nada fazer a não ser abaixar a cabeça e obedecer. É necessário, portanto, desaparecer com tal tipo penal, para que naturalmente a sensação de endeusamento dos servidores públicos se dissipa, por completo, da mente das pessoas e dos próprios servidores, para que estes últimos entendam que são, literalmente, funcionários da população.


terça-feira, 20 de junho de 2017

Informações sobre a Ação Popular

            A Ação Popular é um importante instrumento existente na democracia brasileira. Criada em 1965 – em pleno regime militar, por mais estranho que possa ser -, a Lei de Ação Popular, a Lei 4717/65 determina que qualquer pessoa cidadã – ou seja, pessoas que estejam em gozo de seus direitos políticos (para mais detalhes, vide art. 15 da Constituição Federal) – possa impetrar Ação Popular com o intuito de questionar judicialmente ato feito pela Administração Pública Direta ou Indireta, visando a nulidade de atos lesivos ao patrimônio público.
            Segundo a Lei de Ação Popular, ato lesivo ao patrimônio público é nul quando houver: incompetência, ou seja, quando o ato não se incluir nas atribuições legais do agente que o praticou; vício de forma; quando há omissão ou observância incompleta ou irregular de formalidades indispensáveis à existência ou seriedade do ato; ilegalidade do objeto, quando o resultado do ato importa em violação de lei, regulamento ou outro ato normativo; inexistência dos motivos, quando a matéria de fato ou de direito, em que se fundamenta o ato, é materialmente inexistente ou juridicamente inadequada ao resultado obtido ou quando houver desvio de finalidade, que ocorre quando o agente pratica o ato visando a fim diverso daquele previsto, explícita ou implicitamente, na regra de competência. Também podem ser decretados nulos os atos ou contratos estipulados no art. 4º da Lei 4717/65, como contratos sem prévia licitação.
          Em 1988, a Constituição Federal brasileira incrementou, em seu art. 5º, LXXII, a possibilidade de a Ação Popular também requerer a nulidade de atos lesivos ao meio ambiente, ao patrimônio histórico e cultural e à moralidade administrativa; aumentou-se, portanto, o escopo da Ação Popular, na qual anteriormente era voltada apenas para visar a nulidade de atos lesivos ao patrimônio público.
            Dessa forma, pode-se utilizar a Ação Popular para proibir que o Município permita a demolição de um prédio histórico, por exemplo, ou que permite o desmatamento em Área de Proteção Ambiental. É a única modalidade de ação em que uma única pessoa consegue proteger, em nome próprio, o direito da coletividade – é proibido que uma pessoa defenda o direito de outra judicialmente -, já que, nas demais ações coletivas (como a Ação Civil Pública), somente alguns órgãos autorizados por lei (entes federados, Ministério Público, dentre outros) podem impetrar tais ações.
           A Ação Popular não possui nenhum custo para aquele que a impetra, nem prévio ou posterior – em suma, sem pagamento de custas processuais, nem honorário sucumbenciais em caso de derrota - exceto se a Ação for manifestamente temerária, onde o autor deverá pagar o décuplo das custas.
        Assim sendo, devido à ausência de custas e a possibilidade de se anular judicialmente atos lesivos ao patrimônio público, moralidade administrativa, meio ambiente e patrimônio histórico e cultural, a Ação Popular é uma forma legítima e importante de controle constitucional, uma vez que a sociedade pode questionar de seus representantes seus atos, buscando as vias jurisdicionais para anular atos lesivos.
     

terça-feira, 13 de junho de 2017

Incoerências no Código de Trânsito Brasileiro



            Em 1997, o então Presidente da República Fernando Henrique Cardoso sancionou a Lei 9503, que instituiu o Código de Trânsito Brasileiro, modificando toda a legislação de trânsito até então vigente. Em seu contexto, trouxe conceitos, infrações administrativas e, nos art. 291 e ss., os crimes de trânsito, sendo que os crimes propriamente ditos foram instituídos entre os art. 302 e 312 do supramencionado diploma legal.
            Foram instituídos 11 tipos penais diferentes, a seguir elencados:
           
        “Art. 302. Praticar homicídio culposo na direção de veículo automotor:
       
        Art. 303. Praticar lesão corporal culposa na direção de veículo automotor:
       
        Art. 304. Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública:

        Art. 305. Afastar-se o condutor do veículo do local do acidente, para fugir à responsabilidade penal ou civil que lhe possa ser atribuída:

        Art. 306.  Conduzir veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência:

        Art. 307. Violar a suspensão ou a proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor imposta com fundamento neste Código:
       
        Art. 308.  Participar, na direção de veículo automotor, em via pública, de corrida, disputa ou competição automobilística não autorizada pela autoridade competente, gerando situação de risco à incolumidade pública ou privada:

        Art. 309. Dirigir veículo automotor, em via pública, sem a devida Permissão para Dirigir ou Habilitação ou, ainda, se cassado o direito de dirigir, gerando perigo de dano:

        Art. 310. Permitir, confiar ou entregar a direção de veículo automotor a pessoa não habilitada, com habilitação cassada ou com o direito de dirigir suspenso, ou, ainda, a quem, por seu estado de saúde, física ou mental, ou por embriaguez, não esteja em condições de conduzi-lo com segurança:

        Art. 311. Trafegar em velocidade incompatível com a segurança nas proximidades de escolas, hospitais, estações de embarque e desembarque de passageiros, logradouros estreitos, ou onde haja grande movimentação ou concentração de pessoas, gerando perigo de dano:

        Art. 312. Inovar artificiosamente, em caso de acidente automobilístico com vítima, na pendência do respectivo procedimento policial preparatório, inquérito policial ou processo penal, o estado de lugar, de coisa ou de pessoa, a fim de induzir a erro o agente policial, o perito, ou juiz:”

            Entretanto, como muitas de nossas leis não foram cem por cento bem feitas, a legislação de trânsito, no tocante aos crimes em espécie, possui diversas incoerências, causando inúmeros transtornos diários aos operadores de Direito.
            Dentre as incoerências, dá para se citar três delas, as quais se darão ênfase neste texto. A primeira das incoerências – e talvez a mais famosa delas – se dá no art. 303 do Código de Trânsito. Nele se narra a conduta de causar lesões corporais, de forma culposa, a terceiros, estando na direção de veículo automotor. Como pena, fixa-se a pena privativa de liberdade de período de 6 meses a 2 anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou habilitação para dirigir veículos automotores. Demonstra-se maior preocupação do legislador em punir aquele que lesiona terceiros na direção de veículo automotor em detrimento daquele que lesiona terceiros de forma geral – eis que a pena da lesão corporal culposa é de 2 meses a 1 ano.
            Todavia, o art. 303 do Código de Trânsito Brasileiro se preocupa única e exclusivamente nas lesões corporais culposas, deixando a cargo da legislação geral – Código Penal, no caso – tratar das lesões corporais dolosas. O Código Penal trata a lesão corporal de três formas – lesão leve, grave e gravíssima -, tendo como pena das lesões leves a privação de liberdade de 3 meses a 1 ano. Ou seja, quem lesiona culposamente terceiros – aquele que atropela alguém estando com sono, por exemplo – recebe como pena a prisão de 6 meses a 2 anos, enquanto que aquele que lesiona dolosamente terceiros – aquele que joga o veículo em alguém, objetivando machucá-lo – recebe como pena prisão de 3 meses a 1 ano, em caso de lesões leves. Ora, isso é uma grande incoerência legislativa. A pena de lesão corporal dolosa é a metade da pena de lesão corporal culposa, o que é inconcebível, pois viola o Princípio da Proporcionalidade, eis que os crimes dolosos são mais gravosos que os crimes culposos.
            A segunda incoerência da legislação de trânsito se dá logo no artigo seguinte, o art. 304. O dito artigo trata da omissão de socorro na direção de veículo automotor, dizendo ser crime “Deixar o condutor do veículo, na ocasião do acidente, de prestar imediato socorro à vítima, ou, não podendo fazê-lo diretamente, por justa causa, deixar de solicitar auxílio da autoridade pública”, tendo como pena a detenção de seis meses a um ano, ou multa. Estava o legislador trazendo o crime de omissão de socorro do art. 135 do Código Penal para a legislação de trânsito, modificando suas elementares.
            Todavia, o que realmente chama a atenção nesse artigo é o seu Parágrafo Único, in verbis: “Parágrafo único. Incide nas penas previstas neste artigo o condutor do veículo, ainda que a sua omissão seja suprida por terceiros ou que se trate de vítima com morte instantânea ou com ferimentos leves.”. Segundo o dito parágrafo, cometerá crime ainda que sua omissão seja suprida ou a vítima tenha morte instantânea ou ferimentos leves. Omissão suprida ou ferimentos leves, tudo bem. Mas morte instantânea? O crime de omissão de socorro é crime de periclitação da vida e da saúde (Capítulo III, Título I do Código Penal), ou seja, a omissão de socorro é perigosa – e tratada como crime -, pois deixa a mercê da sorte a saúde ou até a vida da pessoa que sofreu acidente – de trânsito, no caso do art. 304. Tem como condão obrigar as pessoas a ajudarem aqueles que estão com a saúde e a vida em risco – como já tratado anteriormente, por causa de acidente de trânsito, no caso do art. 304 – para que estes não venham a falecer ou terem lesionadas suas saúdes – tanto que o Parágrafo Único do art. 135 do Código Penal aumenta a pena em até o triplo em caso de lesões corporais graves ou morte. Mas... se a pessoa teve morte instantânea, pra que socorrê-la? Qual risco de lesão à saúde ou à vida ela sofrerá? Nenhum, uma vez que já falecera. Não gera perigo algum à vida ou à saúde da vítima. E não pode alegar obrigação de socorrê-la para preservar o cadáver, pois não é a omissão de socorro crime contra o respeito aos mortos. Deixar de “socorrer” alguém que morreu instantaneamente é, portanto, fato atípico – eis que não há ofensa ou perigo de ofensa a nenhum bem jurídico penalmente tutelado.
            A última incoerência da legislação de trânsito adveio com a Lei 12.971, de 9 de maio de 2014. Dentre outras modificações, a lei modificou o art. 302 do Código de Trânsito, aumentando-se um § 2º, assim dito:

             “Art. 302 [...] § 2o Se o agente conduz veículo automotor com capacidade psicomotora alterada em razão da influência de álcool ou de outra substância psicoativa que determine dependência ou participa, em via, de corrida, disputa ou competição automobilística ou ainda de exibição ou demonstração de perícia em manobra de veículo automotor, não autorizada pela autoridade competente: 
Penas - reclusão, de 2 (dois) a 4 (quatro) anos, e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.”

            Ou seja, aquele que matar alguém na direção de veículo automotor (art. 302, caput) estando sob influência de álcool ou outra substância psicoativa que gera dependência, ou participa de racha, estará recebendo as iras do novo § 2º do art. 302, ao invés das iras do caput. Entretanto, o referido § 2º determina como penas as mesmas existentes no caput, só substituindo a detenção para reclusão. E mais, pode-se abrir brecha na lei para que não se puna aquele que mata alguém dirigindo veículo automotor estando embriagado, por exemplo, pelas iras do art. 306, eis que o § 2º do art. 302 trata do mesmo assunto, o que geraria bis in idem, vedado no nosso ordenamento jurídico. Fora não haver nenhuma modificação entre as penas do caput e do § 2º do art. 302, eis que ambos são crimes culposos, recebendo, portanto, todas as benesses dadas aos tais crimes – como a pena restritiva de direitos (art. 44, caput, I, in fine do Código Penal). O legislador quis modificar a legislação de trânsito no intuito de reforçar a punição dada a quem dirige o veículo sob efeito de álcool ou praticando richa (como, de fato, fizeram no art. 308, que trata da richa), mas acabou por abrandá-la – ou abrir brecha para tal. Pelo menos, tamanha a incoerência, em 2016, o legislador percebeu o próprio erro e revogou o § 2º do art. 302 do Código de Trânsito Brasileiro (Lei 13.281).
            Criar legislação não é fácil – principalmente legislação criminal, que qualquer palavra colocada erroneamente pode desviar a lei de sua função quando criada -, necessitando de uma grande atenção por parte dos nossos legisladores, o que, decerto, faltou, ao se criar a parte penal do Código de Trânsito Brasileiro.
           

quinta-feira, 8 de junho de 2017

Por que Cunha recebeu novo mandado de prisão, se já está preso?



            Vimos nos últimos dias inúmeras notícias no campo político, principalmente em relação à Operação Lava-Jato, certamente uma das maiores – senão a maior – operação realizada pela Polícia Federal até agora. E algo chamou a atenção da população brasileira: tanto na Operação Patmos – a operação que investiga a compra do silêncio do ex-Presidente da Câmara Eduardo Cunha e o Presidente da República Michel Temer –, realizada no dia 18 de maio de 2017, quanto nas Operação Manus e no desdobramento das Operações Cui Bono e Sepsis, realizada no dia 06 de junho de 2017 – as operações levaram à prisão o também ex-Presidente da Câmara e ex-Ministro do Turismo Henrique Eduardo Alves -, decretaram a prisão do ex-Presidente da Câmara, que já estava preso desde o dia 19 de outubro de 2016.
           Ou seja, o Eduardo Cunha foi alvo de novos mandados de prisão quando ele já se encontrava preso. E, logicamente, muitas pessoas acabaram por perguntar para nós o porquê de decretar nova prisão preventiva de uma pessoa já presa. Dessa forma, iremos explicar rapidamente o motivo de se decretar nova prisão preventiva de uma pessoa já presa.
           Quando o réu preso impetre Habeas Corpus ou Relaxamento de Prisão e o magistrado defere o pedido, ele deferirá somente naquele processo. No final da decisão que deferiu o pedido, ele determina a expedição de alvará de soltura, a menos que o réu esteja preso em outro processo. Sempre virá escrito, ao final, uma frase como: “Expeça-se o competente alvará de soltura em favor do impetrante, para o devido e imediato cumprimento, salvo se ele estiver preso por outro motivo ou houver mandado de prisão expedido em desfavor dele
            Dessa forma, com mais de uma prisão preventiva expedida em desfavor do mesmo acusado – como o próprio Eduardo Cunha e o Henrique Eduardo Alves -, é necessária a expedição de mais de um pedido de soltura deferido para que o acusado deixe a prisão, pois o mero deferimento de ordem de Habeas Corpus ou Relaxamento de Prisão em um único processo não livrará a pessoa da cadeia.

terça-feira, 6 de junho de 2017

Crimes contra os Costumes



Os costumes estão sempre se modificando. Isso é uma certeza. Não dá para comparar o costume do início do século XX com o de agora, início do século XXI – da mesma forma que os costumes serão outros completamente diferentes no começo do século XXII. E os costumes influenciam o Direito, principalmente o Direito Penal, que também se modifica à medida que os costumes vão se modificando.
Nos  últimos cem anos, o Direito se modificou enormemente, com o intuito principal de se acompanhar os costumes, que foram evoluindo junto à sociedade, o que nos leva hoje a se surpreender com as legislações vigentes no final do século XIX e início do século XX, a qual daremos uma pequena pincelada nesse texto, a título de curiosidade – tendo como enfoque principal o Direito Penal, sobretudo os crimes sexuais.
O Código Civil de 1916 trazia uma imensa diferenciação entre os homens e as mulheres. Os homens eram, por exemplo, expressamente determinados como chefes da casa (art. 233), competindo-lhe atribuições diferentes da mulher – como autorizar a mulher para trabalhar e o direito de fixar a residência do casal. Este fato se dá porque a mulher casada era considerada relativamente incapaz (art. 6º, II), junto aos indígenas, os pródigos e os maiores de 16 e menores de 21 – na época, os deficientes mentais eram absolutamente incapazes (art. 5º, II). Ainda, caso a mulher fosse deflorada antes do casamento e o marido não sabia de tal situação, ele tinha o prazo de 10 (dez) dias a contar do casamento para anular o mesmo – sendo que somente este tinha tal direito, não podendo a mulher anulá-lo em caso de o marido não ser virgem também (art. 178, § 1º c/c art. 219, IV). Tal situação perdurou até a Lei 4.121/62, que modificou as condições da mulher casada.
Mas o que mais mudou, sem sombra de dúvida, foi o Direito Penal. No Código Criminal de 1890, era crime realizar atos de capoeira (art. 402, com pena de 2 a 6 meses de prisão) e ser vadio – a qual a pessoa era condenada a cumprir pena de 15 a 30 dias e assinar termo de ocupação lícita em 15 dias, sob pena de novo crime com penas que variavam entre 1 e 3 anos.
Já no tocante aos crimes sexuais, cerne deste trabalho, era crime, com penas de 1 a 4 anos de prisão, deflorar (ou seja, retirar a virgindade) de mulher menor de idade, utilizando para tanto de sedução, engano ou fraude (art. 267) – e era efeito da sentença dotar a ofendida (art. 276, caput), não havendo imposição de pena se o casamento com este se seguir com a permissão do representante legal da ofendida ou desta, se maior de idade (Parágrafo Único). Da mesma forma, estuprar mulher honesta (art. 268) dava pena maior que estuprar mulher “da vida” (6 meses a 2 anos, contra os 1 a 6 anos originais), e ainda se poderia utilizar da regra do art. 276, já mencionado.
Em 1940, durante o Estado Novo, Getúlio Vargas outorgou uma nova legislação penal (Código Penal de 1940; Decreto-Lei 2.848), que modificou os crimes para os costumes daquela época. Os crimes sexuais passavam a ser crimes contra os costumes – e não mais crimes contra a honra e segurança das famílias; e ainda não sendo os crimes contra a liberdade sexual da vítima de hoje. Passava a ser crime, com penas que variavam entre 1 e 3 anos de prisão, ter relação sexual com a mulher, utilizando-se para tanto de fraude – mas só seria punido se a mulher fosse honesta, excluindo-se por completo da proteção penal as mulheres “da vida” (art. 215).
A mulher virgem também tinha uma imensa proteção penal no novo Código. Era crime, com penas de 2 a 4 anos de prisão, seduzir mulher virgem com idade entre 14 e 18 anos, utilizando-se de sua confiança ou inexperiência – com propostas de amor eterno ou casamento, por exemplo – para manter relação sexual com esta. Ou seja, era crime de sedução (art. 217) conhecer uma moça virgem, de idade entre 14 e 18 anos, fazer juras de amor e proposta de casamento iminente, retirar a virgindade desta e depois sumir no mundo, não cumprindo o prometido. Era uma segurança penal para a moça e a família, já que a mulher deflorada poderia não vir nunca a se casar.
Havia também o crime de rapto (art. 219 e ss.), que consistia em raptar mulher honesta, utilizando-se de fraude, violência ou grave ameaça e for com fim libidinoso e dava pena também de 2 a 4 anos. E, caso a vítima fosse maior de 14 anos e menor de 21, e o rapto dava com o seu consentimento – por exemplo, para fugir com o amor de sua vida -, ainda sim seria crime, com penas que variavam entre 1 e 3 anos de prisão. O crime aqui não era contra a mulher, e sim contra a honra de sua família. Por isso o consentimento da moça era insuficiente para fazer como fato atípico a conduta do agente.
As penas dos crimes contra os costumes aumentavam em um quarto da pena original se o agente fosse casado (art. 226, III), haja vista que, para a sociedade, era mais ultrajante um homem casado atacar os costumes do que um solteiro. E, caso a vítima se casasse com o agente que cometeu o crime, o último não deveria cumprir a pena; ou, se a vítima foi alvo de crime contra o costume sem violência ou grave ameaça e se case com terceira pessoa, deveria requerer o prosseguimento da ação penal ou do inquérito policial no prazo de 60 (sessenta) dias a contar a celebração do casamento, sob pena de extinção da punibilidade (art. 107, VII e VII). O legislador entendia que a mulher atingiu os fins “de sua vida” – o casamento. Deve-se salientar que tais possibilidades de extinção da punibilidade sobreviveram à reforma da Parte Geral do Código Penal, ocorrida pela Lei 7.209, em 1984, só sendo revogado pela Lei 11.101, em 2005, junto dos crimes de sedução, casamento e o aumento de pena existente para o homem casado.
Ainda no tocante aos crimes contra os costumes, podemos destacar o famigerado art. 229 do Código Penal que, até a última reforma dos crimes contra os costumes (que, inclusive, modificou para crimes contra a dignidade sexual) - trazida pela Lei 12.015/09 - era crime, com penas de 2 a 5 anos de prisão, manter lugar destinado a encontros para fim libidinoso, como os motéis, por exemplo – ainda que estes, teoricamente, sirvam para pernoites. Era crime, portanto, até o ano de 2009, possuir motéis.
Por fim, ainda existem algumas condutas sexuais que sobreviveram no tempo, ainda que completamente fora da realidade dos costumes existentes na atualidade.  O Código Penal possui como crime, apenado de 1 a 3 anos, induzir alguém a satisfazer a lascívia de outrem (art. 227). Ou seja, se eu, por exemplo, conhecer uma pessoa que se encontra desesperadamente para conhecer alguém apenas para satisfazer sua vontade sexual, que há muito ele satisfaz sozinho e pedir para uma outra pessoa satisfazer a vontade da primeira, cometo o crime do art. 227 do Código Penal, que ainda se encontra vigente. Podemos ainda destacar o art. 229 do Código Penal, que ainda vige – ainda que sem a proibição dos motéis – e proíbe, com as mesmas penas, locais em que ocorra a exploração sexual, embora sabemos perfeitamente que os bordéis são permitidos e tolerados em todo o país. É comum, inclusive, que os pais levem seus filhos adolescentes aos bordéis – os famosos “puteiros” – para estes perderem a virginidade, em completo contrassenso com a ideia do crime de ser um ato repugnante e desprezado pela sociedade – como o homicídio e o estupro.
Finalizando, podemos destacar o também famigerado art. 234 do Código Penal, que prevê pena de 6 meses a 2 anos, para aquele que faz, importa, exporta,  adquire ou tem distribuição ou exposição pública, escrito, desenho, pintura, estampa ou qualquer objeto osceno, para fins comerciais. É proibido pela legislação brasileira – ainda vigente – vendas de revistas masculinas como “Playboy” ou “Sexy”, sexshop, relação sexual na televisão ou no teatro, etc. Tal dispositivo era importante e vigente na década de 40, quando o pudor e a moral eram imensas. Atualmente, com a quebra do tabu com o sexo e a internet – que permitem aos que navegam acesso a uma carga incomensurável de vídeos, fotos, pinturas pornográficas -, este tipo penal caiu por terra, soando até engraçado informar que tal dispositivo ainda segue vigendo – na teoria, claro.
Conforme demonstramos anteriormente, os costumes – principalmente no tocante ao sexo – mudou imensamente nos últimos anos, modificando junto o Direito Penal. Se os tipos penais fossem como hoje há 100 anos, colocariam todos que lá vigiam de cabelo em pé, escandalizados e ofendidos. Da mesma forma, se os tipos penais existentes naquela época hoje estivessem vigentes, faríamos todos nós rimos e debocharmos – e sabíamos que grande parte das legislações cairiam por terra pelo Judiciário brasileiro, até que fossem revogados pelo Legislativo, como de fato foram. E, temos certeza, que daqui a 100, 200 anos, os costumes serão completamente diferentes, fazendo com que condutas hoje proibidas ou liberadas sejam descriminalizadas ou criminalizadas com maior ou menor rigor. A sociedade muda, os costumes mudam e o Direito Penal, acompanhando  a ambos, muda também. E assim seguimos...